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segunda-feira, 21 de janeiro de 2013
Primavera Cinzenta
Das nuvens, tempestade de uma primavera cinzenta,
Emerge um dos triunfos de nossa civilização tecnológica:
Um ser de metal de oitenta toneladas,
Imune aos raios e às rajadas de vento
Das mãos firmes do piloto,
Partem os comandos precisos
Para que o A320 rasgue os céus,
E encontre a bonança
Segundos antes,
Uma poltrona à frente, em diagonal
Uma jovem chora baixinho
Olhos fechados, bíblia na mão
“Não há problemas em evocar crendices,
se isso a acalma”
– penso, cá com meus botões
Me acalmo calculando os riscos
A jovem segue chorando
Lágrimas vertem
Enquanto a fuselagem sacode
Basta cessar a turbulência
E chama a atenção
Como o deus bondoso,
Que acabara de nos livrar da gravidade inexorável
Parece ter se transformado
No impiedoso deus do Velho Testamento cristão
Em segundos,
De olhos ainda embotados,
A jovem alterna entre gratidão e preconceito,
Ignorância, perversidade
Tensão
Mal termina de agradecer
E já desdenha um casal homossexual que viu no saguão
Discute o que é “agir em Jesus”
Discursa sobre as (supostas) falhas na teoria da evolução
Reabre um livro que estava sob a bíblia
O subtítulo me assusta:
“O ministério com crianças começa no ventre”
Termina sua palestra com o batido discurso pró-vida
Um punhado de células embrionárias
Valem mais que as 10 trilhões de uma mulher em sofrimento
Chego a torcer por um pouco mais de turbulência
E os que não aceitam um mundo aleatório
Dirão que fui, finalmente,
Ouvido
Mergulho em meu próprio silêncio
Lembro que temos tecnologia para construir aviões e foguetes,
Para visitar outros planetas,
Mas corremos o risco de naufragar em uma nova idade média
Nos mares revoltos de uma teocracia
Um novo sacolejo põe fim ao discurso de ódio:
“Senhores passageiros, por favor afivelem os cintos …
O serviço de bordo será interrompido
Iremos passar por (mais) uma zona de instabilidade”
Autor: Daniel Oliveira
(Baseado em fatos reais.
Escrito em um guardanapo da TAM, em 18 de setembro de 2012,
a bordo do voo JJ 3166, de Porto Alegre para Congonhas.
Aos corretores de plantão digo que, sim, sei que no hemisfério sul a primavera começaria apenas em 22 de setembro, ou seja, quatro dias depois do poema. Mas, por favor, considerem isso uma licença poética :>)
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